Com vasta experiência no mundo académico e corporativo, José Epifânio da Franca explica-nos como o conhecimento pode sair das universidades portuguesas para criar inovação no mundo. Uma reflexão sobre o conhecimento na sociedade portuguesa e de como novas metodologias de ensino podem alterar o país de forma impactante. Ainda falta muito por fazer, mas estamos no caminho certo.
Pode ver a nossa conversa aqui:
Ou pode ouvir no nosso podcast no Spotify (também disponível noutras plataformas):
Vontade de ser útil
Quando se apresenta e explica o seu percurso, José Epifânio da Franca, Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico, empreendedor e especialista em microeletrónica, menciona várias vezes que foi movido “pela vontade de ser útil”. No decorrer da conversa fica claro que quis ser útil à sociedade, ao seu país e ao mundo.
Forma-se em Engenharia Eletrotécnica no IST em 1978 e ali começa a sua carreira de docente, em simultâneo com o emprego de engenheiro na EDP.
É convidado pela British Telecom a fazer doutoramento na Imperial College em Londres, que conclui em tempo recorde e vence várias distinções. Seguem-se diversos convites para trabalhar internacionalmente, mas decide voltar a Portugal e fazer a diferença cá.
Cria o Grupo de Circuitos e Sistemas Integrados no IST, onde procura criar conhecimento científico. Foge às regras tradicionais de grupos similares e dispensa professores catedráticos para o orientar.
Ele próprio recruta e orienta alunos para avançarem com ele no conhecimento científico na área de eletrónica e microeletrónica.
Em 10 anos, orientou 25 alunos de mestrado e 12 de doutoramento.
Além da orientação dos estudos, sente a responsabilidade moral de criar bons empregos para quem convenceu a trabalhar e investigar com ele.
Assim nasce a ChipIdea, empresa que cria sem ambição de ser empresário, mas por um espírito de missão de gerar bons empregos.
A empresa é criada em conjunto com dois alunos seus e garante empregos bem remunerados para quem produz trabalho de elevado valor acrescentado e em território nacional.
Por motivos contratuais, a empresa é vendida a um grupo norte-americano.
No entanto, ainda hoje, portugueses que querem trabalhar com design de chips têm emprego com salários competitivos quase garantido em Portugal.
Seguem-se várias atividades no setor público e privado e somam-se os prémios e homenagens
Hoje continua a dedicar-se ao ensino, e depois de ter ensinado diferentes cursos relacionados com engenharia, leciona uma cadeira de Empreendedorismo aos alunos de 3º e 4º ano dos vários cursos de Engenharia do IST.
Parte I: A Educação tem que ser útil à Economia
Heróis sem celebração num passado sem educação (académica)
Para José Epifânio, existe na sociedade portuguesa espírito empreendedor extraordinário.
“Muitos dos setores tradicionais que são a base da capacidade exportadora do país (têxtil, confeções, calçado) foram criados por pessoas que não tinham nenhum grau universitário. O país não lhes deu essa oportunidade. Sem esse privilégio, não tiveram outra alternativa senão lançarem-se à vida e ao mundo” e foi assim que muitas empresas nacionais nasceram.
Apesar de hoje em dia ser muito diferente, e existirem vários gestores com grau universitário no panorama nacional, a origem do nosso tecido empresarial é um mundo do qual se fala pouco.
“Deviam ser um exemplo para quem tem conhecimento, mas não têm a atitude empreendedora de se atirar ao mundo a fazer coisas.”
O mundo académico e a indústria “são mundos diferentes e que não conversam um com o outro.” Para José Epifânio, é uma realidade triste do nosso país que tem que ser alterada. Vivemos numa sociedade com demasiados silos entre diferentes áreas. “Se não resolvermos isto, não vamos ter economia do conhecimento.”
A Economia do Conhecimento no panorama nacional
A importância da gestão da informação e do conhecimento é cada vez maior na geração de riqueza e prosperidade de um país.
A economia do conhecimento é centrada nas pessoas, que detêm o conhecimento e, por isso, “é importante investir no desenvolvimento do conhecimento das pessoas.”
No entanto, “não vamos ter economia do conhecimento com milhares de doutores na universidade. Não interessa o número de universitários que criarmos, se não tiverem impacto na economia.” Como exemplo, alerta para o número de desempregados licenciados ou que se encontram em trabalhos mal-remunerados e sem progressão como os supermercados.
“É essencial que exista economia à volta da ciência e ávida do conhecimento que é produzido pelas universidades”. Em Portugal esta procura é quase inexistente em diversas áreas mas a solução não passa por reclamar do país nem da economia que temos e sim de uma adaptação às circunstâncias da procura e criação de novas oportunidades.
Parte II: Retirar conhecimento das Universidades requer pragmatismo financeiro
A hierarquia do conhecimento académico
O conhecimento adquirido e produzido nas universidades segue uma trajetória bem definida:
⁃ Na licenciatura, aprende-se o básico numa área geral de conhecimento
⁃ Pode seguir-se o mestrado, cujo objetivo é conhecer em melhor profundidade uma área e as últimas novidades (“state of the art knowledge”)
⁃ Por fim, o doutoramento que visa contribuir para o progresso do novo conhecimento numa área muito específica (avançar o “state of the art knowledge”)
Por sua vez, o doutoramento tem fundamentalmente três fases:
- Identificar um problema num espaço de conhecimento: encontrar o que não está feito ou não está suficientemente bem feito
- Trabalhar na resolução desse problema até encontrar uma solução
- Escrever a tese, comunicando a solução encontrada
Uma boa tese de doutoramento não faz uma empresa
A valorização económica do conhecimento só ocorre quando se encontra alguém que esteja disposto e interessado em pagar por esse conhecimento.
Um aluno pode produzir uma tese de enorme qualidade, mas se a economia não tiver interesse nesse conhecimento, se não existir um problema que é solucionado por esse trabalho, não haverá interesse económico pelo mesmo.
Muitos cientistas estão interessados em si, na sua curiosidade e criatividade pessoal, e não no mercado.
“Temos um problema sério (nas universidades), porque há uma pesquisa académica do estado do conhecimento atual mas depois não existe pesquisa e adequação ao que o mercado quer.”
Processo semelhante mas com conteúdo diferente: Doutoramento vs Empresa
José Epifânio relembra que apesar de ter sido muito reconhecido internacionalmente pelos seus pares e recebido prémios nos seus avanços a nível de pesquisa académica, nada disso interessou quando fez a sua empresa. A nível económico, o interesse das empresas no que fez, foi quase zero.
A nível do processo, fazer um doutoramento e uma empresas têm semelhanças: ambos consistem em identificar um problema, encontrar uma solução e comunicar essa solução.
No entanto, a nível de conteúdo são bastantes distintos. “Na vida científica, a referenciação das coisas é o conhecimento em geral. O importante é publicar, comunicar. O incentivo é a publicação e a progressão da carreira associada a isso. Não há nenhuma preocupação de saber se alguém paga pelo que se produz. Podem fazer-se teses de doutoramento altamente especulativas.
Com a criação de uma empresa, não pode ser assim. A preocupação tem que ser pragmática, de resolver problemas de pessoas ou de empresas. Porque são estas que poderão estar interessadas em pagar pelo que se faz.
É necessário haver um alinhamento das características do produto com as necessidades do mercado ao qual o produto se destina.” E depois disso, produzir o que o mercado quer de forma competitiva.
A importância de procurar as melhores referências no mundo
Todos temos ideias inovadoras todos os dias. Mas será que essas ideias podem gerar uma empresa de sucesso?
Para José Epifânio, é importante não ficarmos presos à inovação que surgiu na nossa cabeça e no nosso contexto local.
“A Apple não inventou o iPhone, a Google não inventou o motor de busca e o YouTube não inventou o streaming.
Todas estas empresas analisaram no mundo o que de melhor se fazia no espaço de conhecimento relevante e viram o que existia e onde podiam ser os melhores.”
“As nossas referências são tudo.” E determinam a ambição de aonde podemos chegar. “Se nos focarmos no nosso bairro, apenas poderemos fazer algo muito pequeno. Se nos focarmos no mundo”, podemos fazer algo muito maior.
“Nós somos tão bons quanto as nossas referências forem. Mas temos que ter um espaço de referências certo, senão não estamos a potencializar tudo o que podemos criar.”
Parte III: Sistema de Ensino em Mudança
O sistema de ensino tradicional deu demasiadas respostas sem estimular procurar soluções
Habituado a ver empresas e alunos a sugerirem ideias e inovações para novas empresas, alerta que muitas vezes não existe a curiosidade para procurarem se já existe alguém que já desenvolveu algo melhor.
Nunca houve no mundo tanta informação disponível e de fácil acesso. Mas José Epifânio acrescenta que muitas vezes não há a cultura, atitude e curiosidade dos alunos para irem procurar informação.
“O telemóvel que temos no bolso tem tudo, basta ter a curiosidade e a intuição de procurar. Infelizmente, temos um sistema educativo que fornece demasiadas respostas e não estimula a procura de soluções e informação.”
“Toda a educação dos alunos foi formatada para terem um professor a dizer-lhes o que vão fazer.”
Quando observamos uma criança, ela é sôfrega de conhecimento. São ousadas e desformatadas. O que o sistema de educação tem feito é a aniquilação dessa curiosidade ao avaliar e premiar a aquisição do conhecimento e não estimular a manutenção da curiosidade que temos. Precisamos de um ensino mais desafiante onde os alunos sejam menos apaparicados (spoon-feeding).
Novos modelos, maior responsabilização para os alunos e novas funções para os professores
Novos métodos de ensino (que têm sido falados nesta série) como o “Project-based learning”, resolução de desafios, são uma solução para este tipo de atitudes.
O papel do professor não é estar a dizer o que fazer, inibindo a independência, arrojo e sonhos nos alunos.
“Eu não posso permitir que um aluno só vá procurar respostas nos materiais expositivos da matéria.” É essencial o sistema educativo fomentar a curiosidade e com isso estimular nos alunos a atitude de ir procurar o conhecimento na internet. É necessário deixar os alunos pensar no que vão querer fazer, escolhendo utilizar (ou não) o conhecimento que têm.
“O professor deve estar ao lado e ajudar com a sua experiência e estimular novos pensamentos. Ajudar a navegar no desconhecido sem retirar a responsabilidade de decidir.”
Parte IV: Desafios Nacionais
Com base nas suas experiências pelo mundo corporativo e académico, José Epifânio alerta para várias aspetos do panorama nacional:
Economia: provavelmente não estará em Portugal
José Epifânio confessa que se tivesse feito a sua carreira nos Estados Unidos nunca teria feito uma empresa. Não havia na economia portuguesa empresas que precisassem do conhecimento que ele e seus alunos desenvolviam.
Foi preciso ir à procura da economia à volta do seu espaço de conhecimento.
Foi necessário buscar interessados além-fronteiras. Primeiro procurou investidores no estrangeiro e depois, não os encontrando, procurou clientes.
E assim nasceu a ChipIdea.
Empreendedorismo: coragem e confiança num ambiente por vezes castrador
Para José Epifânio, o empreendedorismo é sobretudo uma atitude perante a vida. É sobretudo coragem, e também inconsciência, de começar algo novo como uma empresa.
“A inconsciência é suportada pela confiança que permite a uma pessoa fazer o que ela não sabe. Mas tem a confiança que vai ser capaz. Que seja qual for a situação que lhe vai aparecer pela frente, vai conseguir ultrapassar. “
“Mas temos problemas sociais”, assume ao falar do país. “Uma sociedade que não tolera o falhanço castra o espírito empreendedor. E o espírito empreendedor é exatamente isso, temos que correr o risco de falhar, de não correr bem.”
Salários: vender por muito ou ser vendido por pouco
Durante o tempo que liderou a ChipIdea, José Epifânio focou num crescimento rápido da empresa para tentar assegurar a sua permanência em Portugal e elevar os salários para o nível da Europa Central.
No entanto, sabemos que é comum empresas multinacionais virem para Portugal contratar bons engenheiros e pagarem o preço local, baixo quando comparado com outros países da Europa. “Deixamos que o nosso conhecimento seja capturado por quem sabe como vender ao mundo.”
Para José Epifânio, a solução é simples. “Temos que ter a coragem, ambição e determinação de ir vender o nosso conhecimento ao mundo e sermos nós a capturar esse valor.”
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